Pelas madrugadas, pelos becos e baixios dos viadutos, pelas ruas do centro das cidades, eles podem ser vistos portando kits com seringas, cachimbos, água de limpeza, algodão e camisinha. Só no Brasil, esses personagens somam mais de mil, atuando em cerca de 250 programas em mais de 200 municípios.
Não são seguidores de alguma seita noturna, nem pregadores ou perseguidores do uso de droga. São “redutores de danos”, uma atividade que tem mais de 15 anos, autorizada por lei, mas que ainda é ignorada por muitos e condenada pelas instituições mais conservadoras. Na prática, é uma estratégia de saúde pública da mais absoluta racionalidade, com resultados embasados por pesquisas, especialmente fora do país: se as pessoas não conseguem abandonar certos atos destrutivos, como o uso de drogas, é melhor ensiná-las a praticá-los de forma a correr menos risco.
Foi assim que se iniciaram os trabalhos de redução de danos com os usuários de heroína injetável em alguns países da Europa e na Austrália. A maioria deles estava adoecendo e morrendo não pelo consumo da droga, mas pelos vírus da Aids e da hepatite, transmitidos entre os membros do grupo pelo uso coletivo das seringas. Como o abandono da droga é um processo longo – e nem sempre possível ou desejado –, melhor e mais urgente era reduzir as infecções. E isso só foi possível distribuindo seringas novas entre os usuários. Em muitas cidades do Reino Unido, a taxa de infectados entre quem injetava heroína caiu de pouco mais de 50% para menos de 10%. Os usuários continuaram se picando, mas passaram a freqüentar os postos de saúde, a receber cuidados e atenção médica. Passaram a se ver como cidadãos com direitos, quando antes eram apenas marginais.
O Brasil foi um dos primeiros países fora do grupo dos desenvolvidos que ousou essa estratégia. Pagou por isso.
A cidade de Santos saiu na frente propondo um programa de troca de seringas ainda em 1989, quando David Capistrano Filho era o secretário de Saúde e o médico Fábio Mesquita foi convidado a implantar um programa de redução de danos. Cidade portuária, Santos estava entre as primeiras no ranking dos casos de Aids, a maior parte pelo uso de droga injetável. Os números e os relatos internacionais mostravam que a troca de seringas usadas por novas era o caminho para a redução da epidemia, mas o Ministério Público só enxergava pelos olhos da lei. E, de acordo com a lei, oferecer seringas era considerado um incentivo ao uso de drogas, o equivalente ao tráfico, o que podia custar 12 anos de prisão.
Ameaçados de cadeia pelo mesmo órgão que se propõe a defender a sociedade, Capistrano e sua equipe mudaram de estratégia e voltaram atrás. Deu-se início então a uma “guerra de guerrilhas”, com grupos de várias cidades começando programas de troca de seringas, muitos com o apoio financeiro e técnico do Ministério da Saúde. Em São Paulo, por exemplo, o grupo É de Lei conseguiu habeas corpus preventivo para impedir que seus membros fossem detidos por estar portando o kit com seringas e preservativos. Em Salvador, onde em 1994 se iniciou o primeiro programa de redução em parceria com a Universidade Federal da Bahia, vários membros tiveram problemas com a polícia. Marcos Manso, da sociedade baiana de redutores, diz que essa dificuldade ainda continua.
A Fapesp e a Parada Gay Quase duas décadas depois das ameaças de prisão em Santos, reações da mídia nos últimos meses vieram mostrar que a política de redução de danos continua sendo mal entendida e utilizada como pretexto de ataque às pessoas engajadas com a saúde pública. Ainda em junho passado, a mídia se alarmou diante de um panfleto distribuído na Parada Gay ensinando como usar o canudo de forma correta para cheirar cocaína. O folheto orientava para usar um canudo próprio, não compartilhar com outros, nem usar cédulas de dinheiro. Qualquer infectologista dirá que esses cuidados são importantes para se evitar a transmissão de hepatites, HIV e DSTs.
O folheto apareceu na mídia como um incentivador ao uso de drogas e a distribuição foi cancelada. Na seqüência, a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) suspendeu o financiamento de uma pesquisa que tentava avaliar os benefícios da redução de riscos no consumo de ecstasy nas danceterias de São Paulo. A pesquisa era coordenada pela pós-doutoranda Stella Pereira de Almeida e pela professora titular do Instituto de Psicologia da USP, Maria Teresa Araújo Silva. A direção da Fapesp, que já financiava a pesquisa havia um ano, suspendeu o apoio a partir de uma notícia na mídia. Foi a primeira vez que a fundação cortou um estudo por critérios morais.
Nos dois casos, o Ministério da Saúde veio a público lembrar que a redução de danos é uma política de saúde pública reconhecida e protegida por legislação. Mas a virulência da mídia e a tímida reação oficial acenderam as luzes de alarme dos sanitaristas e movimentos que trabalham com redução de danos. Os episódios da Parada Gay e da censura na Fapesp mostravam que se trata de uma política pública de saúde que ainda precisa de muita informação e convencimento.
Redução de danos dentro do SUS
Essa sensação de fragilidade apareceu em diversos momentos ao longo dos dois dias do Seminário Nacional sobre a Articulação das Ações de Redução de Danos no Âmbito do SUS, realizado no início de setembro, em Brasília. O extenso nome do seminário tinha um propósito básico: buscar formas de inserir, no cotidiano do Sistema Único da Saúde, as ações de redução e o trabalho dos redutores, como se faz com qualquer outro procedimento na área da prevenção e da assistência. Desta forma, os redutores poderão ser contratados, por exemplo, como agentes de saúde, e os municípios receberiam por ações ou outra forma de remuneração. Garante-se, desta maneira, a manutenção dos programas, seu fortalecimento, sua ampliação e avaliação, a visibilidade e o reconhecimento dos agentes, e os direitos humanos dos usuários.
Ao sair dos lugares poucos iluminados, das ruelas e guetos, o programa de redução de danos deixa sua clandestinidade involuntária para se mostrar como uma das ferramentas mais eficazes da saúde pública. Embora ainda bastante associada à troca de seringas para “drogados”, a filosofia da redução de danos já se estende para outras drogas ilícitas, especialmente o crack e o ecstasy. E está conseguindo adeptos nas famílias mais conservadoras quando se aplica ao uso responsável do álcool.
Como o álcool é uma droga “legal” e seu consumo cada vez mais freqüente e precoce, nenhuma instituição pensa em proibi-lo, mas todos concordam que é preciso um movimento da sociedade para reduzir seus danos: pelo menos 50% das mortes no trânsito e 30% dos homicídios têm a ver com o consumo excessivo. Pregações como “se beber, não dirija”, ou “vá de táxi”, ou “eleja um amigo da vez” que não beberá para dirigir na volta, são recomendações que ninguém coloca em questão.
Pesquisas proibidas
Várias universidades e ONGs participam de programas de consumo responsável de álcool, inclusive com o apoio dos fabricantes de bebida que não desejam ver sua marca relacionada a acidentes e querem, sim, continuar vendendo mais. Mas quando se trata de pesquisar a redução de danos com drogas ilícitas, a resistência ainda prevalece, como aconteceu com a Fapesp. Como avaliar os efeitos da droga no organismo ou no comportamento de um “drogado” se a droga do estudo é proibida e o objeto da pesquisa é alguém sem direitos e visto como marginal? Há mais de cinco anos uma pesquisa da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) mostrou que a substituição do crack pela maconha vinha conseguindo resultados importantes. Nesse caso, a mudança de perfil de uso significava para muitos jovens a saída de um caminho que o levaria à morte. O uso da maconha permitiu a muitos o abandono do crack, a participação no grupo e a procura por cuidados em saúde.
Os resultados promissores da pesquisa nunca puderam ser colocados em prática oficialmente, porque propor a alguém o consumo de uma droga ilícita – mesmo que seja para se livrar de uma mais danosa – é considerado crime.
A questão da pesquisa foi um dos temas mais debatidos no encontro de Brasília. Muita gente da academia que se ocupa com o tema, mas questiona a redução de danos, alega que os resultados são apenas empíricos, sem a metodologia clássica. Na prática, já há várias teses de doutorado aprovadas na USP – entre outras universidades – mostrando evidências científicas da redução de danos.
“Mas precisamos de mais dados, mais estudos, que se faça um marketing dessa estratégia de saúde e que o conceito de redução de danos seja divulgado junto à população”, disse o médico Paulo Teixeira, consultor internacional e criador do primeiro programa de DST-Aids no Brasil.
O seminário de Brasília foi conduzido por três programas do Ministério da Saúde, o de DST-Aids, de Saúde Mental e de Hepatites Virais. Participaram representantes de ONGs e de programas estaduais e municipais, a Unodc (órgão das Nações Unidas para o controle das drogas) e a Secretaria Nacional Antidrogas. Três entidades fundamentais no processo do SUS estiveram no encontro, o Conselho Nacional de Saúde, o Conass e o Conasems, que reúnem os secretários estaduais e municipais de Saúde, porque são as cidades que convivem com as diferenças. As propostas tiradas do encontro de Brasília serão levadas à XIII Conferência Nacional de Saúde, que acontece em novembro e que define a política de saúde para os próximos anos.
Tarefas de um redutor de danos
Em um país onde há uma secretaria com o nome de “antidrogas”, e onde o uso é criminalizado, embora para a atual lelgislação o usuário não seja mais um criminoso, as políticas de saúde estão sempre em choque com uma filosofia de segurança pública repressiva.
“A resolução que garante nosso trabalho é federal, mas muitos policiais, nos estados e municípios, ainda tratam a pessoa que usa drogas como marginal. É preciso um trabalho de capacitação desses profissionais”, diz a psicóloga sanitarista Maristela Moraes, vice-presidente da Aborda, Associação Brasileira de Redutoras e Redutores de Danos. Junto com a Rede Nacional de Redução de Danos (Reduc) e as associações estaduais, a Aborda está elaborando um cadastro para saber quantos são os programas ou projetos, os redutores e os usuários atendidos. O Ministério da Saúde estima em 190 mil o número de usuários de drogas injetáveis, mas não há estimativas sobre dependentes de cocaína, crack e outras drogas. No Recife, onde Maristela atua, são cerca de 15 redutores vinculados aos CAPs-AD, que são Centros de Atenção Psicossocial para usuários de álcool e drogas, serviço que existe em todo o país.
Para se tornar um redutor que vai a campo não é preciso usar drogas, nem ter usado. “O importante é que tenha acesso à roda dos que usam drogas, aos grupos, aos guetos onde os agentes de saúde não conseguem chegar”, diz a psicóloga. Ganhar a confiança daquele que usa droga, fazer com que adote cuidados básicos, que ganhe auto-estima e possa procurar um posto de saúde – “se quiser” – são as tarefas do redutor de danos.
Em Sorocaba, a ONG Lua Nova vem conseguindo trazer para dentro do CAP-AD da rua Minas Gerais, no centro da cidade, muitos usuários que antes só eram contatados “em campo”, ou seja, nos locais onde usam drogas. A estratégia adotada foi passar a administração do centro, aos sábados e à noite das 19h às 22h, para os próprios usuários. Quatro deles se revezam na administração, cuidando da lavanderia, da cozinha, da limpeza e do acolhimento de novos usuários. “Entre 20 a 30 passam pelo centro todas as noites e aos sábados”, diz a psicóloga Raquel Barros, presidente da Lua Nova. Contando aqueles atendidos nas ações de rua, são entre 500 a mil usuários, estima Raquel. Durante o dia, o CAP da Minas Gerais é tocado pela equipe técnica como qualquer outro, com assistente social, psicólogo, etc. Do lado de fora do posto, há armários como esses de academia onde os usuários deixam a droga ou arma que eventualmente estejam portando e ficam com a chave do cadeado. “Nós não proibimos que usem drogas. Mas não usar aqui dentro é uma questão de respeito”, diz a psicóloga. Nas horas que passa ali, o grupo já organizou curso de vídeo e criou uma série de atividades.
É de Lei na Cracolândia
No país todo são cerca de 1.200 CAPs-AD e 138 deles têm Programas de Redução de Danos (PRDs) com atividades externas. Nos 24 serviços especializados em DST-Aids da cidade de São Paulo, 12 têm PRD, todos com equipes que saem às ruas em diferentes áreas da cidade, diz Elza Alves Ferreira, que coordena o PRD-Sampa, de São Paulo.
Entre as ONGs que trabalham com redução de danos em São Paulo, o grupo É de Lei mantém um trabalho contínuo desde 1998 e sua sala de convivência fica nas galerias da rua 24 de Maio, região central da cidade. Restaram poucos usuários de drogas injetáveis nessa região. A maior freqüência é de jovens que vivem ou se drogam nas ruas da vizinha Cracolândia. A equipe do É de Lei distribui três kits diferentes, um para quem usa droga injetável – com seringas, água limpa para dissolver a droga e algodão para limpeza –, um segundo – com piteira de silicone e protetores labiais, para quem usa crack – e um terceiro, o “kit-snif” – com um canudo de silicone e um papel laminado, para quem usa cocaína cheirada. Todos são acompanhados de preservativos e folhetos informando sobre hepatite e DST-Aids, além de recomendações básicas sobre saúde.
No ano passado, o grupo distribuiu cerca de 2 mil piteiras e 3 mil protetores labiais para os cerca de 200 jovens que são contatados na Cracolândia. “É uma população difícil de se aproximar, muito vulnerável, e que vem enfrentando a ‘operação limpa’ da prefeitura, que quer tirá-los dali sem oferecer uma solução para essas pessoas”, diz a psicóloga Marina Sant’Anna, presidente do É de Lei.
Entre as muitas dificuldades da redução de danos, uma é a contratação dos redutores, pois os órgãos públicos exigem concursos. Alguns municípios tiveram de buscar brechas na lei para contratá-los. Em Itajaí, por exemplo, que já teve o mais alto índice de infecção pelo HIV/Aids no país por conta da droga injetável, abriu-se um concurso em que a participação em seminários e oficinas sobre redução danos contava pontos. E como não existe na prefeitura a função de redutores de danos, foram contratados como agentes de endemias. Assim, entre o grupo que já participava da redução de danos, praticamente todos passaram no exame. Ganham R$ 568 por mês e, entre os 15, dois têm curso superior e os outros estudam Psicologia, Fisioterapia, Enfermagem, Pedagogia e mesmo Medicina. “No início, a maioria usava drogas. Hoje isso não interessa mais, todos são agentes com experiência”, diz a Giovana Foltran, que dirige o programa de DST-Aids de Itajaí.