Por Roberto Efren Filho
A criminalização da esfera política, que faz da política caso de polícia, produz uma desesperança generalizada nos políticos, na legitimidade das instituições inclusive – notadamente quando se quer ver prejudicado algum Governo – mas sem afetar as funções estruturais dessas instituições, no que tange aos interesses do capital.
Está no Aurélio. Personificar é o mesmo que personalizar, representar por meio de uma pessoa. Tomemos uma pessoa específica, a propósito dos recentes acontecimentos: o corrupto. Representar – e isto também está no Aurélio – é ser a imagem ou a reprodução de. O corrupto parece representar a corrupção. Existe, no entanto, um espaço-tempo entre o que representa e o que é de fato representado. Neste espaço-tempo há uma estrutura cujo desconhecimento pode nos levar ao aprisionamento da busca eterna pelo vilão, quando o que nos prende realmente é o conto de fadas.
Tomemos “Daniel Dantas”, o vilão da vez, como exemplo para o que pretendo demonstrar. O “caso Dantas” sugere níveis sofisticados de articulação dentro e fora do Estado. As denúncias que o envolvem, arrastam com ele de assessores do Executivo a membros do Supremo Tribunal Federal. Uma leitura crítica acerca das correlações fáticas existentes no “caso” poderia nos guiar a conclusões acerca dos porquês estruturais da corrupção. Não é essa leitura, entretanto, a que se multiplica midiaticamente. Nos meios de comunicação, a feitura da hegemonia implica na cristalização da figura do corrupto. É como se ele não viesse de canto algum, como se suas relações com o mundo inexistissem. O corrupto personifica a corrupção, como seria numa representação, mas a corrupção mesma é reduzida a uma ou outra pessoa corrupta, sem comprometer substancialmente instituições.
O vilão é desonesto, inescrupuloso, imoral. Vejamos o lócus ocupado pelo presidente do Supremo nessas discussões. Gilmar Mendes é o centro, e não o STF ou o Judiciário, tanto que a revista Veja, na mesma edição em que trazia Dantas como capa, não tardou em convocar outro membro do próprio Judiciário, Carlos Ayres Britto, presidente do Tribunal Superior Eleitoral, para que ele explanasse em páginas amarelas suas opiniões acerca da política, dos políticos e da democracia. Coincidência? A personificação nos leva à falsa crença de que a corrupção se define como o conjunto dos corruptos. Daí a cristalização da pessoa, da personagem, do vilão. Todo o aparato institucional que ergue “os vilões” é posto à sombra, engendrando a idéia de que a eliminação dos corruptos seria suficiente para a eliminação da corrupção.
A personificação da corrupção opera uma naturalização da imoralidade no corrupto. “É ele o culpado”. “Se ele não se vendesse, não se corrompesse, as coisas seriam diferentes”. Mesmo a famosa citação do “todo político é ladrão” não vai além da pessoa do político/ladrão. O desvio na honestidade, na hombridade é do político, uma característica atribuída ao indivíduo. O sistema no qual “o poder corrompe” resta, de costume, intocado. Em qualquer possibilidade de ameaça ao sistema, alguma personagem é jogada aos leões, como acontece com o “vilão da vez” supracitado. Acreditar que sua exposição pode significar um efetivo ganho contra a corrupção é um ingênuo equívoco.
Paralelamente à sua personificação, a corrupção projeta – como crime que é – a criminalização da esfera política. São dois diferentes momentos, reciprocamente determinados. A criminalização da esfera política, que faz da política caso de polícia, produz uma desesperança generalizada nos políticos, na legitimidade das instituições inclusive – notadamente quando se quer ver prejudicado algum Governo – mas sem afetar realmente as funções estruturais dessas instituições, por conta da personificação, no que tange aos interesses do capital.
O modo de produção capitalista mantém com o Estado uma simbiose própria. Em certas conjunturas, essa relação oferece uma Administração Pública ilibada às aparências. Noutras, como é o caso de nosso país, estratégico é confundir a figura do político com a do bandido. Num ou noutro modo, as determinações entre a economia e o Estado procuram canais de justificação. No Brasil, a corrupção tem ocupado essa função histórica. Aqui as causas da desigualdade, por exemplo, não parecem estar vinculadas ao capital: “o problema está na impunidade, nesse bando de corruptos”.
Dessa forma, não é de surpreender que os últimos heróis nacionais sejam justamente delegados da Polícia Federal. A luta não é contra a impunidade e pela caça aos corruptos? Corruptos não são ladrões? Os perigos de glorificar o papel da polícia como solucionadora dos conflitos sociais, no entanto, são latentes. A fé na Polícia Federal não está muito distante enquanto fato sociológico da fé no BOPE, por exemplo. Ambas apostam na punição e na personificação, ambas legitimam a coerção estatal.
Não quero dizer com isso que as pessoas dos delegados em questão sejam equiparáveis a um Capitão Nascimento. Não, de jeito algum. Fizeste isso, estaria eu sacrificando todos os meus argumentos acerca da personificação, caindo nela. Quero dizer que apesar das boas intenções e do grande trabalho de delegados e da polícia, a fé atualmente disseminada na polícia se coaduna com uma estrutura social que centraliza as atenções na criminalização e afasta os seus porquês estruturais do debate.
Interessante notar ainda que essa fé na Polícia Federal é mesclada no senso-comum com a ojeriza crescente nas metrópoles às polícias estaduais “assassinas de crianças”. Se essas polícias se limitassem a matar bandidos, parece-me que grandes problemas não haveria para esse mesmo senso-comum.
A corrupção como justificação do estabelecido é o nosso conto de fadas. Se a personificação cristaliza a corrupção nas personagens dos políticos, essa corrupção personificada vem servir de respaldo para que a realidade pareça intransponível, ou apenas mutável a partir da punição dos culpados, dos “vilões”, levada a cabo por um aparelho coercitivo.
A hegemonia, através das estratégias acima abordadas, não nos permite que nos perguntemos qual é a relação entre a corrupção e o latifúndio, entre a corrupção e a propriedade privada, entre a corrupção e, como diria Vinícius de Moraes, “o lucro do patrão” e a “mão do operário”. Perguntas desse tipo, bem mais do que a que fiz no título deste texto, colocariam em xeque não a corrupção – justificação fabricante de consensos – mas todo o complexo estrutural que a sustenta no que concerne aos interesses do capital. O espaço-tempo aqui é o do horizonte de nossos questionamentos enquanto contra-hegemonia. É mais do que hora de nos convencermos de que a ilusão do combate aos vilões deve ser transmutada na luta pelo desvelamento direto do conto de fadas. Talvez assim criemos nossas próprias asas.
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