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terça-feira, 10 de março de 2009

A hegemonia, o aborto e as leis de deus


 

Mais do que o pecado de uma menina de nove anos vítima de um estupro, o arcebispo de Olinda e Recife contesta uma posição estatal. Dom José Cardoso Sobrinho vem por em xeque normas consagradas pelo ordenamento jurídico pátrio.

 

Roberto Efrem Filho, na Agência Carta Maior.

 

Os meios de comunicação, notadamente os pernambucanos, têm conferido atenção especial nos últimos dias ao caso da menina de nove anos, moradora do município de Alagoinha, no Agreste de Pernambuco, descoberta grávida de gêmeos. Vítima de estupro, a criança foi conduzida ao Sistema Único de Saúde para o cumprimento do aborto legal. Em reação à decisão da família de levar a cabo o aborto, ao acolhimento médico-hospitalar e ao apoio de organizações feministas e de direitos humanos, Dom José Cardoso Sobrinho, o arcebispo de Olinda e Recife, excomungou da Igreja Católica todas as pessoas envolvidas material e mesmo simbolicamente no cumprimento do aborto legal. Segundo o arcebispo, trata-se de um crime gravíssimo contra as leis de deus.

O artigo 128 do Código Penal Brasileiro prevê dois casos em que do aborto é afastado o crime. O primeiro deles dá-se “se não há outro meio de salvar a vida da gestante”. Aplica-se a tese do estado de necessidade e, portanto, não há que se falar em antijuridicidade ou ilicitude. O segundo deles ocorre “se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal”. Entre os/as penalistas, essa segunda hipótese é classificada como “aborto sentimental”, dizendo respeito a todas as conseqüências, inclusive psicológicas e afetivas, de uma gestação não quista, decorrente de um ato de violência. Também no segundo caso, configurar-se-ia o estado de necessidade e, ademais, a não-exigibilidade de conduta diversa. 

Ambas as hipóteses do aborto legal constituem interessantes encontros e desencontros entre Estado e Igreja. A história de nossa formação estatal, como se deu majoritariamente entre as nações latino-americanas, está umbilicalmente vinculada ao auge e ao declínio do potencial eclesiástico de hegemonização. Seja porque os bárbaros povos indígenas careciam de salvação divina e livramento dos pecados, seja porque os valores da família deveriam ser protegidos contra o ideário comunista, a Igreja historicamente forneceu o aparato simbólico e os argumentos necessários à legitimação do exercício da violência estatal. É possível falar, dessa maneira, numa cumplicidade estrutural entre Igreja e Estado. Isso não apenas porque as duas instituições cumprem íntimas funções de controle social das classes subalternas, mas porque, no contexto brasileiro, Igreja e Estado compartilham um trajeto comum, quase simbiótico, capaz de, em certas circunstâncias, confundir seus papéis. 

A partir da inserção de novos sujeitos nos processos sociais de hegemonização, como a mídia e outros membros do campo religioso - os evangélicos, os espíritas etc. - Estado e Igreja Católica têm sofrido certo rearranjo conjuntural. As derrotas simbólicas, no Congresso Nacional e no Supremo Tribunal Federal, nos debates acerca das pesquisas com células-tronco, por exemplo, demonstram a vivência de uma nova trama nas atuais relações de poder. Importantes setores das classes dominantes exprimem publicamente discordâncias a Igreja. Esta passa, de modo cada vez mais direto, a tomar o Estado - antes seu incondicional aliado - como objeto de lutas. As posturas estatais diante do aborto, das distribuições e usos de preservativos e anticoncepcionais, da união entre pessoas do mesmo sexo, isso para citar somente algumas temáticas, são disputadas a ferro e fogo pelo clero. 

Por certo, mais do que o pecado de uma menina de nove anos vítima de um estupro, o arcebispo de Olinda e Recife contesta uma posição estatal. Dom José Cardoso Sobrinho vem por em xeque normas consagradas pelo ordenamento jurídico pátrio. As hipóteses de aborto legal não são novas no Código Penal, pelo contrário, sua justificação consta na Exposição de Motivos da Parte Especial do Código datada de 1940. Mesmo no campo jurídico, tradicionalmente reconhecido por seu conservadorismo, o artigo 128 não causa polêmicas significativas. Dá-se, contudo, que a disputa empreendida pelo arcebispo vai muito além do aborto legal. Ela se vale do caso sob discussão como meio de reafirmar as posições da Igreja e sua relevância na arena pública, ainda que arcebispo e Igreja surjam momentaneamente como anacrônicos, ortodoxos ou dogmáticos. A eficácia simbólica de todo esse processo está, destarte, menos no aborto em questão, legal e seriamente encaminhado pela equipe do Centro Integrado de Saúde Amaury de Medeiros (CISAM) da Universidade de Pernambuco, e mais na ratificação midiática da necessidade de veiculação da fala da Igreja, inclusive sobre um assunto que no Estado não causa mais divergências. 

Além da disputa do Estado, a intervenção do arcebispo confirma sua posição de dominância dentro da própria Igreja. Dom José Cardoso Sobrinho integra a resposta institucional conservadora da Igreja Católica à importância histórica dos setores cristãos ligados à teologia da libertação e, mais especificamente em Pernambuco, a Dom Helder Câmara. No ano de comemoração do centenário do nascimento de Dom Helder, quem liderou na Igreja uma aproximação com os movimentos sociais e a fortificação das pastorais de base, Dom José Cardoso Sobrinho vem desempenhar a função para o qual foi taticamente escolhido entre seus pares, a de desconstruir os laços por ventura sobreviventes entre a Igreja e as esquerdas e que possam remontar à possibilidade de articulação de uma contra-hegemonia por sacerdotes e fiéis.

Apesar dos rearranjos conjunturais no que tange às relações entre Igreja e Estado, não se deve, todavia, olvidar o peso simbólico do episcopado ou sua cumplicidade estrutural com o Estado. Pertence a Gramsci e a sua noção de bloco histórico a concepção - com a qual concordo - de que a conjuntura forma dialeticamente a estrutura, ou seja, que ambas compartilham uma historicidade. Porém, se os atuais rearranjos conjunturais foram capazes de provocar no STF a decisão favorável às pesquisas com células-tronco e de contrariar a opinião eclesiástica, não se prestaram a arrancar da parede do Supremo Tribunal, ou de suas estruturas, o crucifixo lá presente. É sob o esteio simbólico daquele crucifixo, e de todos os mais pregados nos gabinetes da burocracia estatal brasileira, que Dom José Cardoso Sobrinho tem o que dizer ao público e aos componentes da Igreja. Dessa forma, é contra aqueles crucifixos que o campo das esquerdas deve se erguer. A equipe do CISAM e as organizações feministas e de direitos humanos, excomungados, competentemente o fizeram. Agora, sob as mais diversas estratégias, é a nossa hora de sofrer excomunhão. 

Roberto Efrem Filho é mestre em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e professor substituto da mesma instituição.

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