Tal como no filme “O feitiço do tempo", em que um repórter parte para fazer a cobertura de uma festa e, por algum motivo inexplicável, passa a acordar no mesmo dia, nossa grande mídia parece estar condenada a uma eterna repetição.
Por Gilson Caroni Filho
O jornalismo imita a arte. Tal como no filme “O feitiço do tempo", em que um repórter parte para fazer a cobertura de uma festa e, por algum motivo inexplicável, passa a acordar no mesmo dia, nossa grande mídia parece estar condenada a uma eterna repetição. O tempo passou. A nação reencontrou o caminho da democracia, mas, para boa parte do campo jornalístico, a reconciliação política é algo da ordem do impensável. Perpassada por um caldo de cultura que não admite que a arena do jogo político não comporte mais golpes, nega-se a cumprir sua função fundamental: expressar, com a maior diversidade possível, a complexidade social. Ao não fazê-lo, cerceia o que seria seu fundamento: a liberdade de expressão assegurada no texto constitucional. Torna-se o seu contrário: um obstáculo à efetivação da cidadania.
Quem acompanha a história da imprensa brasileira sabe de suas conexões com interesses dominantes na sociedade fracionada. Conhece, e bem, como são editados fatos e discursos. Tem noção aguda de que a autonomia relativa de uma redação encontra seus limites nos interesses do patronato. Franklin Martins e Helena Chagas estão aí como “respaldos de provas robustas”, “evidências empíricas que valem seu sal” como demonstrou, de forma brilhante, Bernardo Kucinski em seu último artigo para Carta Maior.
É de autoria do jornalista Paulo Francis a máxima segundo a qual “a história é monótona, a cada minuto nasce um leitor idiota”. Parece que, pelo que temos visto nos últimos anos, a suposta idiotia de leitores e telespectadores é algo datado, sem sinalização concreta nos dias atuais. Ainda assim, convém ficar atento a certas “espertezas" que podem custar caro ao campo democrático-popular. Quando isso ocorre, a direita comemora com blocos editorializados no Jornal Nacional. E, claro, a nau dos insensatos ainda chama de bom jornalismo o que não passa de desabrida propaganda ideológica.
Está faltando pouco para que as últimas edições do JN tenham fundo musical. Afinal são comemorativas e o regozijo com uma suposta falha do adversário é conhecido do torcedor brasileiro. Se servir para ocultar novos estudos que comprovam os avanços do atual governo, melhor ainda. Saímos do campo futebolístico e adentramos a arena da luta de classes. Com a elegância da boa resolução visual e o capricho nas chamadas.
Recentemente, o frenesi com um suposto dossiê elaborado na Casa Civil não durou nem duas semanas. Ante as flagrante falhas de roteiro, foi substituído pelo “caso VarigLog" que, previsto para ocupar páginas e telas por alguns meses, durou alguma horas de depoimento no Senado.Um resultado inesperado para aqueles que, desde 2006, não se conformam com um fenômeno inédito: uma desgaste político, já consolidado no imaginário do eleitorado urbano, não se desdobrou em derrota eleitoral. E pior, à reeleição seguiu-se uma impressionante recomposição simbólica do governo.
O enredo agora é o “retorno da inflação" e seu impacto sobre o núcleo pobre da novela diariamente apresentada por William Bonner e Fátima Bernardes. Em tom solene, o casal anunciou na edição de ontem que "O IPCA de 15 de junho ficou acima do esperado: 0,9%. O índice mede a inflação de quem ganha até 40 salários mínimos. Nos últimos 12 meses, a alta foi de 5,89%. Já o Índice Nacional de Preços ao Consumidor (INPC), que mede a inflação para os mais pobres, foi de 6,64%." O depoimento de uma empregada doméstica serviu como reforço dramático e calculado ingrediente de desinformação funcional: “Ivonete Alcântara, que ganha R$ 620 por mês, conhece bem essa realidade”. “O que a gente comprava no início do ano, hoje só dá para comprar a metade”
Sejamos francos, só mesmo sendo muito ingênuo para cair no “conto dos dossiês”. Qualquer pessoa, com um mínimo de bom senso, farejaria de longe a óbvia “trampa”. É o velho jornalismo que, como poucos, sabe servir à direita autoritária e suas lideranças renovadas, habituadas ao jogo em que podem tudo perder, menos os interesses e privilégios. Personagens que se apresentam como novos, ávidos por instaurar um " marco zero" assustador.
Uma imprensa que ignora o princípio da publicidade, não permite à cidadania controlar a informação. Mais que desinformar, avoca para si uma função que não lhe pertence, pretendendo tomar decisões vinculantes para o conjunto da sociedade. Um parlamento midiático, formado por editores tucano- lacerdistas,respaldados por seguidos pronunciamentos de ministros do STF a lhes prometerem sustentação legal em sua aventura.
Ainda mais, e isso é o muito relevante, desde 2006 há vários dossiês sendo escondidos no noticiário global. O primeiro veio do Pnad (Pesquisa Nacional de Amostra por Domicílio). Para desespero dos expoentes da Teoria da Dependência, que agora elegeram a UDN como modelo: o nível de pobreza caiu 19,18% nos três primeiros anos do governo Lula, o maior recuo em dez anos. Somemos a isso a retomada do emprego, estagnada há uma década, segundo Marcelo Néri, coordenador da pesquisa.
Mas o que mais impressionava no “dossiê” a ser ocultado vinha a seguir: “‘Os pobres e ricos tiveram ganhos expressivos de renda’”, dizia Néri, coordenador da pesquisa. 50% dos mais pobres aumentaram sua renda em 8,5%, enquanto os 10% mais ricos, depois de cinco anos de perdas, tiveram ganhos de cerca 6%. A classe média teve um crescimento um pouco menor, de 5,5% da renda."Era esse o governo que privilegiou banqueiros? Com a palavra os editores de economia. Aqueles que deveriam sempre se pautar por evidências empíricas que valem o sal de todo mês.
Passados dois anos, outros "dossiês" continuam sendo discretamente ocultados sob a forma de breves registros, a serem apagados, rapidamente, no dia seguinte à publicação: A taxa de desemprego, anunciada pelo IBGE, caiu para 7,9%, o segundo menor percentual já registrado pela série histórica do Instituto, desde 2002. Certamente há como neutralizar esse "escândalo". O menor número de desocupados só aumenta os riscos de uma inflação de demanda. Para tudo, dirá um bom editor, há um antídoto farsesco.
Outros “dossiês" dão conta de que o volume de crédito cresceu 32% em um ano; que a Previdência tem maior valor médio de benefícios pagos desde 2001; que a desigualdade de renda do trabalho no Brasil, medida pelo Índice de Gini, teve queda de 7%, entre o quarto trimestre de 2002 e o primeiro de 2008.
Mas o direcionamento do noticiário dos conglomerados deve repetir à exaustão, o que a bancada do JN anunciou como o único fato relevante: "Os alimentos foram de novo os vilões da inflação. O arroz subiu 17,09%. Alta também no preço da batata, tomate, macarrão, carne e pão francês. “O que aumentou é o que o pobre come”, disse uma consumidora”.
Pelo visto, a cobertura jornalística continuará não se ocupando com as análises de políticas públicas, mostrando o que é viável ou não. A telecracia continuará impedindo a discussão política que se impõe. O importante é, através de clara sonegação, informativa continuar trabalhando com velhos e novos fantasmas. Será muito difícil para a imprensa fugir de sua própria danação.
Em “O Feitiço do Tempo", o personagem só pode seguir em frente na vida, se mudar seu caráter. Aqui, justiça seja feita às evidências, a arte não imita o jornalismo.
Gilson Caroni Filho é professor de Sociologia das Faculdades Integradas Hélio Alonso (Facha), no Rio de Janeiro, colunista da Carta Maior e colaborador do Observatório da Imprensa.
Quem acompanha a história da imprensa brasileira sabe de suas conexões com interesses dominantes na sociedade fracionada. Conhece, e bem, como são editados fatos e discursos. Tem noção aguda de que a autonomia relativa de uma redação encontra seus limites nos interesses do patronato. Franklin Martins e Helena Chagas estão aí como “respaldos de provas robustas”, “evidências empíricas que valem seu sal” como demonstrou, de forma brilhante, Bernardo Kucinski em seu último artigo para Carta Maior.
É de autoria do jornalista Paulo Francis a máxima segundo a qual “a história é monótona, a cada minuto nasce um leitor idiota”. Parece que, pelo que temos visto nos últimos anos, a suposta idiotia de leitores e telespectadores é algo datado, sem sinalização concreta nos dias atuais. Ainda assim, convém ficar atento a certas “espertezas" que podem custar caro ao campo democrático-popular. Quando isso ocorre, a direita comemora com blocos editorializados no Jornal Nacional. E, claro, a nau dos insensatos ainda chama de bom jornalismo o que não passa de desabrida propaganda ideológica.
Está faltando pouco para que as últimas edições do JN tenham fundo musical. Afinal são comemorativas e o regozijo com uma suposta falha do adversário é conhecido do torcedor brasileiro. Se servir para ocultar novos estudos que comprovam os avanços do atual governo, melhor ainda. Saímos do campo futebolístico e adentramos a arena da luta de classes. Com a elegância da boa resolução visual e o capricho nas chamadas.
Recentemente, o frenesi com um suposto dossiê elaborado na Casa Civil não durou nem duas semanas. Ante as flagrante falhas de roteiro, foi substituído pelo “caso VarigLog" que, previsto para ocupar páginas e telas por alguns meses, durou alguma horas de depoimento no Senado.Um resultado inesperado para aqueles que, desde 2006, não se conformam com um fenômeno inédito: uma desgaste político, já consolidado no imaginário do eleitorado urbano, não se desdobrou em derrota eleitoral. E pior, à reeleição seguiu-se uma impressionante recomposição simbólica do governo.
O enredo agora é o “retorno da inflação" e seu impacto sobre o núcleo pobre da novela diariamente apresentada por William Bonner e Fátima Bernardes. Em tom solene, o casal anunciou na edição de ontem que "O IPCA de 15 de junho ficou acima do esperado: 0,9%. O índice mede a inflação de quem ganha até 40 salários mínimos. Nos últimos 12 meses, a alta foi de 5,89%. Já o Índice Nacional de Preços ao Consumidor (INPC), que mede a inflação para os mais pobres, foi de 6,64%." O depoimento de uma empregada doméstica serviu como reforço dramático e calculado ingrediente de desinformação funcional: “Ivonete Alcântara, que ganha R$ 620 por mês, conhece bem essa realidade”. “O que a gente comprava no início do ano, hoje só dá para comprar a metade”
Sejamos francos, só mesmo sendo muito ingênuo para cair no “conto dos dossiês”. Qualquer pessoa, com um mínimo de bom senso, farejaria de longe a óbvia “trampa”. É o velho jornalismo que, como poucos, sabe servir à direita autoritária e suas lideranças renovadas, habituadas ao jogo em que podem tudo perder, menos os interesses e privilégios. Personagens que se apresentam como novos, ávidos por instaurar um " marco zero" assustador.
Uma imprensa que ignora o princípio da publicidade, não permite à cidadania controlar a informação. Mais que desinformar, avoca para si uma função que não lhe pertence, pretendendo tomar decisões vinculantes para o conjunto da sociedade. Um parlamento midiático, formado por editores tucano- lacerdistas,respaldados por seguidos pronunciamentos de ministros do STF a lhes prometerem sustentação legal em sua aventura.
Ainda mais, e isso é o muito relevante, desde 2006 há vários dossiês sendo escondidos no noticiário global. O primeiro veio do Pnad (Pesquisa Nacional de Amostra por Domicílio). Para desespero dos expoentes da Teoria da Dependência, que agora elegeram a UDN como modelo: o nível de pobreza caiu 19,18% nos três primeiros anos do governo Lula, o maior recuo em dez anos. Somemos a isso a retomada do emprego, estagnada há uma década, segundo Marcelo Néri, coordenador da pesquisa.
Mas o que mais impressionava no “dossiê” a ser ocultado vinha a seguir: “‘Os pobres e ricos tiveram ganhos expressivos de renda’”, dizia Néri, coordenador da pesquisa. 50% dos mais pobres aumentaram sua renda em 8,5%, enquanto os 10% mais ricos, depois de cinco anos de perdas, tiveram ganhos de cerca 6%. A classe média teve um crescimento um pouco menor, de 5,5% da renda."Era esse o governo que privilegiou banqueiros? Com a palavra os editores de economia. Aqueles que deveriam sempre se pautar por evidências empíricas que valem o sal de todo mês.
Passados dois anos, outros "dossiês" continuam sendo discretamente ocultados sob a forma de breves registros, a serem apagados, rapidamente, no dia seguinte à publicação: A taxa de desemprego, anunciada pelo IBGE, caiu para 7,9%, o segundo menor percentual já registrado pela série histórica do Instituto, desde 2002. Certamente há como neutralizar esse "escândalo". O menor número de desocupados só aumenta os riscos de uma inflação de demanda. Para tudo, dirá um bom editor, há um antídoto farsesco.
Outros “dossiês" dão conta de que o volume de crédito cresceu 32% em um ano; que a Previdência tem maior valor médio de benefícios pagos desde 2001; que a desigualdade de renda do trabalho no Brasil, medida pelo Índice de Gini, teve queda de 7%, entre o quarto trimestre de 2002 e o primeiro de 2008.
Mas o direcionamento do noticiário dos conglomerados deve repetir à exaustão, o que a bancada do JN anunciou como o único fato relevante: "Os alimentos foram de novo os vilões da inflação. O arroz subiu 17,09%. Alta também no preço da batata, tomate, macarrão, carne e pão francês. “O que aumentou é o que o pobre come”, disse uma consumidora”.
Pelo visto, a cobertura jornalística continuará não se ocupando com as análises de políticas públicas, mostrando o que é viável ou não. A telecracia continuará impedindo a discussão política que se impõe. O importante é, através de clara sonegação, informativa continuar trabalhando com velhos e novos fantasmas. Será muito difícil para a imprensa fugir de sua própria danação.
Em “O Feitiço do Tempo", o personagem só pode seguir em frente na vida, se mudar seu caráter. Aqui, justiça seja feita às evidências, a arte não imita o jornalismo.
Gilson Caroni Filho é professor de Sociologia das Faculdades Integradas Hélio Alonso (Facha), no Rio de Janeiro, colunista da Carta Maior e colaborador do Observatório da Imprensa.
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