Por Paulo Carrano*
As culturas juvenis são narrativas que falam do profundo mal-estar que é ser jovem numa sociedade produtora de riscos e incertezas, mas também nos dizem das potencialidades da experiência do viver e agir coletivamente na busca por alternativas criativas para a existência. São gestos, símbolos, formas lúdicas de sociabilidade, redes de relacionamento, canções e múltiplas formas de utilizar e representar o corpo aparentemente sem sentido para os “de fora”, mas que dão a liga da experiência comunitária de vivência da juventude neste nosso tempo histórico.
Existe uma multiplicidade de fatores determinantes do “ser jovem” individual e coletivamente. Os jovens de hoje vivem imersos em condições estimulantes e positivas, tais como aquelas geradas pelos avanços científico-tecnológicos; pelas liberdades civis conquistadas com as lutas democráticas; pelo maior campo de autonomia que possuem frente aos adultos; mas também precisam conviver com fatores negativos que complicam a experiência de ser jovem.
Dentre os elementos que marcam negativamente a experiência de ser jovem podem ser apontados: as conseqüências da falência do Estado como promotor de direitos; a força avassaladora dos mercados na produção de necessidades e sentidos culturais; o declínio das instituições socializadoras e de apoio societário, como a família e a escola; o predomínio dos meios de comunicação e dos mercados com suas verdades e valores individualistas; as conexões perversas promovidas pelas redes do crime e das drogas; e o constante fantasma do desemprego e da falta de perspectiva profissional para uma imensa maioria.
A organização social das cidades cria restrições geográficas, materiais e simbólicas para a constituição do livre trânsito das identidades, da produção e da fruição cultural para jovens de todas as idades. Nesse sentido, não é possível falar de identidades apenas restringindo a análise a seus aspectos culturais. A falta e a precariedade dos espaços culturais públicos se apresentam como elementos de forte inibição para que o tempo de juventude possa ser vivido como experiência cultural plural e qualificada.
Não é difícil enxergar o espaço urbano como um cenário de lutas entre competidores desnivelados e posicionados historicamente em confronto com os múltiplos poderes de enunciação, capazes de impor, mediante a coerção ou a sedução, as representações sobre as práticas culturais. Dessa forma, algumas práticas são consideradas legítimas e desejáveis enquanto outras são vistas como irrelevantes ou mesmo marginais. Em outras palavras, é possível afirmar que o direito à cultura na cidade não é igual para todos os seus habitantes e que alguns têm mais direito à visibilidade pública do que outros.
Sem dúvida, os jovens são peças-chave e, simultaneamente, objetos e sujeitos do impulso de mercantilização da vida social, que fragmenta o tecido social em individualidades apartadas de formas societárias mais amplas e solidárias. Nesse mesmo quadro societário de hegemonia das relações de mercado é possível, contudo, perceber a existência de práticas sociais constitutivas de novas solidariedades e identidades coletivas juvenis.
Jovens de todos os estratos sociais se envolvem em distintas formas de participação social, desde as mais tradicionais ligadas a partidos e organizações estudantis até novas formas de mobilização social relacionadas com ações voluntárias de solidariedade, movimentações políticas instantâneas e pouco institucionais, grupos artísticos e esportivos, redes de religiosidade pouco hierárquicas, dentre outras ações coletivas. Jovens das periferias das cidades se articularam em torno de identidades móveis, ambíguas, conflituosas e flexíveis que emergiram e se desenvolveram em espaços periféricos da sociedade numa resposta possível à crise estrutural do capitalismo que elevou enormemente o grau de incerteza no processo de trânsito da juventude para a vida adulta.
Não é possível mais ignorar, contudo, a força da expressividade dos jovens negros das periferias das cidades que denunciam as desiguais estruturas de oportunidades e o racismo velado à brasileira, por exemplo. Ao mesmo tempo, os espaços clássicos de participação (sindicatos, partidos, igrejas, organizações estudantis) seguem sendo ocupados por jovens que trazem os novos sinais das identidades contemporâneas. Estas inserem ruídos de diversidade em instituições acostumadas a lidar com o imaginário das identidades únicas (o militante, o sindicalista, o religioso, o estudante, etc). Os jovens, tanto nos novos espaços de participação quanto nos espaços clássicos, parecem dizer “nós somos muitos e múltiplos” e, assim como Fernando Pessoa afirmou, parecem dizer que o “Eu é cadeia”.
Os jovens recebem espaços da cidade prontos e sobre eles elaboram territórios que passam a ser a extensão de seus corpos: uma praça se transforma em campo de futebol; sob um vão de viaduto se improvisa uma pista de skate ou uma quadra para o basquete de rua; o corredor da escola – lugar originalmente de passagem – se faz para ponto de encontro e sociabilidade. Os diferentes territórios juvenis são também lugares simbólicos para o reconhecimento das identidades comuns, e é em torno de determinado território que se constitui o grupo de iguais. E como a identidade do grupo precisa se mostrar publicamente para se manter, cada grupo cria, então, suas próprias políticas de visibilidade pública que podem se expressar pela roupa, mímica corporal, formas e conteúdos do falar e estilo musical, entre outros.
Assim, a cidade é transformada de espaço anônimo a território pelos jovens atores urbanos que constroem laços, comemoram-se, celebram-se, inscrevem marcas exteriores em seus corpos que servem para fixar e recordar quem eles e elas são. Essas marcas se relacionam com processos de representação, verdadeiras objetivações simbólicas que permitem distinguir os membros dos grupos no tempo e no espaço. As marcas podem ser objetivadas no próprio corpo, como uma tatuagem, ou mesmo habitar o corpo como adereço de identidade, tal como acontece com os bonés, que se transformaram em fonte de tensão permanente em algumas escolas que não toleram seu uso – talvez por não enxergarem que esses sejam signos que representam a extensão da própria subjetividade dos jovens alunos que reagem ao terem de deixar “parte de si” fora do espaço-tempo da escola.
As expressões juvenis estão voltadas para a coesão de seus grupos de referência (códigos, emblemas, valores e representações que dão sentido de pertencimento a grupos) – aquilo que chamamos por vezes, de forma imperfeita e simplificadora, de referências tribais. É comum que esta relação com os grupos de referências entre em choque com os valores de instituições (especialmente a escola e a família) que insistem em pensar os jovens apenas como sujeitos em transição, carentes de valores e referências. O isolamento de jovens em seus grupos de identidade é também desafio para a constituição de uma “sociedade civil juvenil democrática”; sem dúvida, jovens podem se perder no isolamento das identidades caso não consigam construir espaços para o diálogo entre eles e com os “outros”.
Em linhas gerais, podemos dizer que os jovens em seus grupos culturais buscam a inclusão, o reconhecimento, o respeito e a abertura para a possibilidade de viver a diferença. Até que ponto, entretanto, o “mundo adulto” se encontra disposto a dialogar e a ouvir o que os jovens e seus grupos têm a nos dizer?
* Paulo Carrano é coordenador do Observatório Jovem do Rio de Janeiro, da Universidade Federal Fluminense
segunda-feira, 7 de julho de 2008
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