Os desafios da educação pública no Brasil estão chegando a novos patamares. Depois dos esforços para a universalização do ensino fundamental, da primeira à nona série, resta ainda sua necessária qualificação, mas é hora também de adequar às novas demandas o ensino médio. À espera, sentados nas carteiras às vezes literalmente pequenas para seu tamanho, estão mais de 8 milhões de jovens, que duelam com adversários variados para sustentar o interesse e a freqüência na sala de aula. Sem esquecer os jovens que nem mesmo encaram o duelo, deixando a escola ainda nas séries finais do ensino fundamental, baixando as taxas de matrícula no nível médio, nos anos mais recentes.
O despreparo das redes públicas para atender a uma demanda que mais do que dobrou ao longo da década de 1990, com a afluência de estudantes muito pouco qualificados, além de uma histórica dificuldade da sociedade brasileira para determinar suas finalidades, contribuíram para transformar o ensino médio “no elo mais frágil da educação”, conforme declarou, em março passado, o ministro da Educação, Fernando Haddad. Fortalecê-lo é um desafio de todos: da sociedade; do governo federal, que determina suas diretrizes; dos governos estaduais, que o gerenciam, e dos educadores, que o implementam diretamente nas salas de aula. | Abrindo horizontes
No âmbito federal, alguns programas vêm ajudando a encurtar o caminho até a universidade, olimpo reservado à elite dos colégios particulares, hoje um pouco mais próximo dos estudantes da rede pública por meio de ações como o Enem (Exame Nacional do Ensino Médio, proposta para substituir o vestibular, mas ainda longe disso), o Prouni (Programa Universidade para Todos) e o Reuni (Reestruturação e Expansão das Universidades Federais).
Ainda há muito por fazer, além de abrir horizontes – e o ensino médio segue como tijolo mais fraco da obra em execução permanente. O ministro da Educação defende um maior envolvimento da União no problema, com a federalização de uma parte maior do que o atual 1% das matrículas. “Nosso objetivo é chegar a alguma coisa entre 8% e 10% das matrículas”, declarou ele, em março deste ano. “Se tivermos um instituto federal em cada microrregião, não precisaremos federalizar 100%. Poderemos ter uma rede bastante robusta, para vertebrar o ensino médio nos estados, que precisam de apoio técnico, mais do que financeiro”.
Para o ministro que enxerga no nível médio o elo mais frágil do setor no Brasil, com indicadores de qualidade que pioram desde 1995, “a escola que temos é melhor do que sair da escola, mas nossas unidades de ensino, como estão organizadas, ainda fazem pouca diferença na vida dos alunos. Há apenas três anos, os alunos não contavam nem com livro didático”, diz ele, defensor também da inclusão de jovens de 16 e 17 anos no programa Bolsa Família.
Haddad observa que, apesar da grande expansão conseqüente ao Reuni, apenas um sexto dos adolescentes chegará à universidade. “Logo, se o jovem não sair do ensino médio preparado para o mercado de trabalho, terá pouco interesse de continuar indo às aulas”, analisa. | Na lanterna
Uma olhada nos resultados do Enem – transformado no principal aferidor do desempenho dos estudantes de ensino médio brasileiro, embora careça de maior uniformização nacional, já que suas provas são opcionais – revela a contundente desigualdade que domina o próprio setor público. Os alunos das redes convencionais amargam médias baixíssimas, enquanto os da elite das escolas técnicas, federais e estaduais, superam até os dos colégios particulares no desempenho.
Na vida real das escolas estaduais convencionais, a realidade se apresenta bem mais difícil. Por isso a presidente do Conselho Nacional de Secretários de Educação (Consed), a professora Maria Auxiliadora Resende, secretária de Educação de Tocantins, defende a gestão centrada no ensino médio, para combater suas deficiências e necessidades com mais força. “O grande drama dos meninos e meninas é a perspectiva de emprego, o que cria um duplo desafio: dar a eles horizonte e melhorar a qualidade do ensino”, analisa ela, responsável por 548 escolas e 23 mil professores em toda a rede, que tem 80 mil alunos no ensino médio. “Na questão do emprego, temos um programa de monitoria remunerada, com bolsa de R$ 150 mensais para 10 mil jovens, e investimos em grêmios estudantis e rádios comunitárias”. Em seis anos, a evasão escolar no estado caiu de 28% para 6%.
Muitos estados têm investido em planos específicos para o fortalecimento do ensino médio. Em Pernambuco, por exemplo, o Procentro – Programa de Desenvolvimento dos Centros de Estudo Experimental oferece aos jovens escola em tempo integral, em razão de parcerias locais. Estados como Acre, Paraná e Minas Gerais também atuam na reorganização e consolidação de suas redes médias. Em São Paulo, o projeto Faz Escola estabelece guias curriculares específicos para o ensino médio, buscando influir diretamente sobre os conteúdos ministrados em sala de aula.
Mas a luta em todo o País continua. “Nem o Bolsa Família reprimirá o abandono”, diz a presidente do Consed. “O jovem enfrenta, no ensino médio, o atraso escolar. Há uma demanda por tecnologia difícil de ser atendida”. Aumenta o desafio para os professores, que precisam manter-se atualizados, diante de alunos que muitas vezes sabem mais, especialmente em temas como Informática. “Eles freqüentam ‘lan houses’ e aprendem sozinhos a montar sites, por exemplo. O desafio é modificar a escola para atendê-los. O professor clássico, o da aula de giz e cuspe, é chato!”, diz.
Há sete anos no cargo, Maria Auxiliadora critica ainda a pouca efetividade do Enem como substituto ou mesmo complemento ao desempenho dos alunos no vestibular – “Não é uma realidade em todo o Brasil”. Sobre o Prouni, ela defende que, “para ser significativo, tem de ter mais vagas e mais instituições envolvidas”. “No meu estado são apenas 200 bolsas. Fica difícil para o aluno acreditar no programa, tê-lo como incentivo para ir à escola todo dia, se não conhece nenhum beneficiado. Ele precisa de um exemplo para se mirar”. No âmbito estadual, Tocantins oferece 5 mil bolsas de ensino superior aos estudantes da rede pública. | Estratégia etária
Carlos Artexes Simões, diretor de Desenvolvimento Educacional do Ministério da Educação, aponta uma conjunção de fatores para explicar as mazelas do ensino médio: esgotamento de uma massificação da educação básica, sem o devido cuidado com o efetivo aprendizado do estudante; mudança de estratégia de um grande número de jovens em relação à escolarização; e falta de significado da proposta curricular para quem procura a escola. “Persiste ainda a necessidade do trabalho na faixa etária do ensino médio. A gravidez precoce é significativa nas mulheres que estão fora da escola: atinge 28% das jovens na faixa etária de 15 a 17 anos que deixaram de estudar. São fatores que não podem ser desconsiderados”.
Mas, para ele, a questão do não-aprendizado, em um cenário de crescente complexidade social, é uma das maiores causas da redução das matrículas. “Temos de fazer uma inversão nas políticas públicas: investir na qualidade e na aprendizagem para promover a universalização do acesso e permanência no ensino médio. A qualidade vai definir o avanço na quantidade de matrículas”, prevê.
Do outro lado da sala de aula, o sentimento é o mesmo. Presidente da União Brasileira de Estudantes Secundaristas, Ismael Cardoso detecta uma melhoria na qualidade do ensino, mas em ritmo lento demais. Ele cita o incentivo ao transporte escolar e a distribuição de livros didáticos – obrigatória –, pelo Plano de Desenvolvimento da Educação, lançado pelo Ministério da Educação – como progressos interessantes. Também saúda o Prouni e o Enem por combaterem a falta de horizonte, mas reivindica mais vagas nas universidades públicas. “Se entender que tem mais possibilidades, o aluno vai se dedicar mais”, argumenta.
Ismael lamenta ainda a falta de incentivo ao investimento em tecnologia, mas espera que a educação não acentue, em nome de aumentar as chances de emprego, um perfil tecnicista, abrindo mão de formar o cidadão por inteiro. Daí, sua defesa do que define como “estágio saudável”, sem prejuízo ao ensino. “O governo precisa incentivar, impor regras claras e fiscalizar a aplicação de recursos e programas”, diz o estudante. Abrir horizontes profissionais e garantir o aprendizado em toda a sua plenitude – um dilema que mobiliza todos os interessados num país com educação de qualidade. | Esforços premiados
Aqui e ali, pipocam exemplos de que, mesmo sem o abrigo seguro das verbas federais, nem o guarda-chuva da ligação com a universidade, que distingue as escolas técnicas, há o que fazer, como evoluir. A Paraíba tem exemplos a oferecer. Há três anos, o estado ganha o Prêmio Ciências do Ensino Médio, promovido pelo Ministério da Educação para estimular práticas de investigação científica na rede pública, destacando iniciativas e experiências inovadoras e bem-sucedidas que ajudam na formação científica dos alunos, nas diferentes áreas do conhecimento (Ciências da Natureza, Matemática, Ciências Humanas e Linguagens). Em 2005, venceu a Escola Monsenhor Vicente Freitas, de Pombal; em 2006, foi a Peonas da Cunha Cavalcanti, de Jurupiranga; no ano passado, ganhou a Escola Professor Lordão, de Picuí.
Funcionando em três turnos, com 40 professores qualificados e 888 alunos (770 no ensino médio), a campeã de 2007 apresentou o programa Repensando Picuí, projeto pedagógico que tratou da história da região onde está localizada a cidade, no interior do estado. Há outras iniciativas bem-sucedidas, como o Xadrez na Escola, que leva a comunidade a freqüentar a unidade nos fins de semana; o cursinho pré-vestibular que, atrelado ao Prouni, garantiu a aprovação de 28 alunos em 2007; e olimpíadas de Matemática e Língua Portuguesa.
A Professor Lordão também possui kit tecnológico, com TV, vídeo, DVD e aparelhagem de som, e laboratório de Informática, com 10 computadores. Mas ainda faltam espaços semelhantes para os estudos de Química, Biologia e Física. “Como estamos numa cidade pequena, parte dos alunos tem uma ocupação além dos estudos. Assim, direcionamos para estágios nas poucas empresas que atuam no município, a exemplo do Banco do Brasil”, explica a professora Adriana Mary de Carvalho Azevedo, ex-aluna e hoje diretora da escola. Jamais por acaso, os 40,42 alcançados pela Professor Lordão no Enem ficaram acima da média do estado (37,92) e do País (39,76). A evasão escolar caiu de 21%, em 2004, para 11%, em 2006.
Também no Nordeste, o Liceu de Maracanaú, cidade de 200 mil habitantes na Grande Fortaleza, promoveu uma pequena revolução em 2005, ao alterar o regime de aulas de trimestral para semestral – mas numa divisão por disciplina. Na primeira metade do ano letivo, Matemática, Física, Química e Biologia; na segunda, Português, História, Geografia, Inglês e Filosofia. Foi um choque no primeiro momento, com grande resistência dos professores, relembra o diretor da escola, Plácido José Souza Cavalcanti. “Houve uma concentração na carga horária. Os professores passaram a ficar mais tempo com os alunos e, por isso, precisaram de uma preparação melhor”, conta ele.
Com 1.500 estudantes, todos no ensino médio, o Liceu apresenta resultados interessantes, no bojo da mudança. A evasão escolar está em 4,5%, menos da metade dos 12% do Ceará. A média no Enem é das mais altas da rede pública estadual: 4,6. “Mas não ficamos orgulhosos, queremos ultrapassar o 5”, projeta Cavalcanti. O Liceu venceu o Prêmio Escola Destaque, dado pelo governo do estado, em 2007, e o Prêmio Nacional de Referência em Gestão Escolar, do Consed, Unesco e Fundação Roberto Marinho. Além disso, Cavalcanti recebeu, em Puebla, no México, a titulação de referência internacional em Ciências. “Nossos projetos privilegiam o ensino e a pesquisa, mas sem perder o foco na questão do emprego. Temos 100 alunos num projeto de estágio com a prefeitura de Maracanaú”, contabiliza ele. “Existe, entre os alunos, a angústia de começar a trabalhar”, constata, “o que leva muitos a escolher o Liceu. Mas os que têm a felicidade de não precisar, são incentivados a se concentrar nos estudos”.
A obra prossegue para dar mais firmeza ao tijolo, ainda vacilante, chamado ensino médio. “As verbas aumentaram, a reformulação educacional atingiu o setor e sinalizou um envolvimento maior do governo federal”, aponta Daniel Iliescu, presidente da União Estadual dos Estudantes do Rio, com uma conclusão que resume, não a Educação, mas o Brasil: “Mas falta mais perspectiva e esperança para as camadas mais pobres da população. Esta é a grande batalha”, inserida na construção de uma educação mais sólida. | |
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