A imensa diversidade biológica da América Latina contribuiu pouco para a agricultura comercial da região, apesar de ser lugar de origem de duas das quatro espécies mais consumidas no mundo, o milho e a batata. A carestia dos alimentos aqueceu o debate sobre produção e comércio agrícola, incluindo a forte queda da biodiversidade na agricultura comercial. A humanidade consumiu mais de 7 mil espécies vegetais em sua história. Mas, nos últimos 100 anos, deixou de cultivar mais de 3/4, e depende de apenas três – milho, trigo e arroz – para atender a quase 70% de suas necessidades calóricas, afirmam dados das Nações Unidas.
Muitos cultivos antigos, como o amaranto (do gênero Amaranthus) e a quinua (Chenopodium quinoa), promissoras espécies latino-americanas, hoje são pouco explorados diante da expansão de cereais como o arroz e o trigo. Junto com essas culturas, também são perdidos conhecimentos a elas associados, empobrecendo a agricultura e a nutrição, afirmam especialistas. O amaranto foi declarado “o melhor alimento de origem vegetal para consumo humano”, em 1979, pela Academia Nacional de Ciências dos Estados Unidos, por suas proteínas e aminoácidos singulares e por não requerer cuidados especiais, muita água nem terra muito fértil. Cultivado por maias, astecas e incas, esteve esquecido até a década de 60, mas atualmente se limita a apenas 2 mil hectares plantados.
“Existe uma cultura que faz com que se prefira outros produtos com menos propriedades alimentícias”, lamenta Alberto Martinez, secretário da cooperativa Sistema Produto Amaranto, de 250 produtores de escassos recursos ao sul da capital mexicana. Em 2007, venderam 300 toneladas de amaranto por US$ 1 mil a tonelada, valor que era o dobro em 2006. Existem plantações de amaranto nos Estados Unidos, na China e na Índia, todas em pequena escala. “Ao depender de não mais de seis cultivos, a população é mais vulnerável às crises de estoque, oferta e demanda”, em especial a mais pobre, disse ao Terramérica Juan Izquierdo, oficial principal de Produção Vegetal da Organização das Nações Unidas para a Agricultura e a Alimentação (FAO) na América Latina.
É o que acontece agora, com as enormes altas dos preços dos alimentos em todo o mundo, que ameaçam ampliar em 100 milhões de pessoas o contingente de 850 milhões de famintos, segundo o Programa Mundial de Alimentos. Os protestos violentos já afetam dezenas de países. Este quadro é resultado de processos que fizeram mais de 100 países muito dependentes dos alimentos importados, começando pela ajuda alimentar, como a dos Estados Unidos. Desde os anos 50, padrões alimentares são “transferidos” para nações pobres, lembra Jean Marc von der Weid, coordenador da organização não governamental Assessoria e Serviços para Projetos de Agricultura Alternativa do Brasil. Depois, a abertura comercial “desigual” das últimas décadas permitiu que Europa e Estados Unidos – muito protecionistas – “inundassem o mundo com alimentos baratos”, bem-vindos por um tempo, até que a crise revelou a armadilha, segundo Von der Weid.
A perda de diversidade é outra conseqüência. O fônio (do gênero Digitaria) é um nutritivo e saboroso cereal da África ocidental, que acabou confinado à área rural. No Brasil, o trigo substituiu boa parte do consumo de mandioca (Manihot esculenta), milho (Zea mays) e feijões (Phaseolus). O problema afeta espécies e variedades, causando uma erosão genética que torna mais vulneráveis as semeaduras. “Apenas dois tipos de feijão preto dominam o mercado brasileiro”, destaca Von der Weid.
O papel das pessoas
As mulheres exercem papéis opostos na diversidade alimentar. Como consumidoras, esmagadas pela dupla ou tripla jornada de trabalho, “contribuem para a homogeneização”, pois buscam alimentos rápidos e fáceis de cozinhar, assegura Emma Siliprandi, agrônoma e socióloga que pesquisa as relações entre gênero e alimentação. Contudo, na agricultura as mulheres são “depositárias da biodiversidade, de sementes e de conhecimentos” sobre numerosos alimentos, infusões e hortaliças plantadas nos quintais, enquanto os homens tendem a seguir a lógica do mercado, descartando as “miudezas”, explica. “São mulheres que iniciaram, na rede internacional Via Campesina, o movimento em defesa das sementes como patrimônio da humanidade”, acrescenta.
Por outro lado, a preocupação dos indígenas vai além. “Não só é preciso resgatar os mal denominados velhos cultivos com alto poder nutritivo, mas também reafirmar nossa concepção da Mãe Terra”, afirma o senador Ramiro Estácio, do Movimento de Autoridades Indígenas do Sudeste Colombiano (Aico). Isso significa “resgatar todo um sistema que implique fortalecer os conhecimentos, a cultura, a variedade produtiva e nutritiva e permita a reafirmação dos saberes milenares”, esclarece.
Agroecologia versus agronegócio
“Recuperar a diversidade depende da agricultura familiar e requer práticas de agroecologia e reforma agrária”, afirma Von der Weid. Ele destaca que é indispensável a educação culinária, porque os hábitos impedem a diversificação de alimentos, como comprovaram tentativas fracassadas de difundir hortaliças no Brasil. Por outro lado, um projeto chileno de hortas urbanas, com educação nutricional e espécies de várias colheitas por ano, teve sucesso. A agroecologia, que descarta os produtos químicos, é “uma proposta interessante”, mas atende apenas “nichos de mercado e não substitui” a grande cultura comercial, afirma Ariovaldo Luchiari Júnior, chefe-adjunto do Centro de Meio Ambiente da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa).
Luchiari reconhece uma tendência ascendente de maior demanda por produtos inócuos, a queda dos fertilizantes não renováveis e os bons resultados de combinações agrossilvopastoris e horticultura. “As exigências atuais do mercado marcam preferências por produtos de maior qualidade, seguros, rastreáveis e com valor agregado, como a cenoura que já vem ralada ou a soja com mais conteúdo de isoflavona, substância que atenua os sintomas da menopausa”, acrescenta.
Enquanto isso, as espécies comerciais têm usos cada vez mais diversos: o milho é alimento humano e animal e matéria-prima de muitos produtos e de um combustível, o etanol. A cana há muito deixou de ser apenas “de açúcar”, é fertilizante e origem de plásticos, enquanto o trigo não é matéria-prima apenas de pão, mas também de biscoitos, macarrão e doces. A biodiversidade de nossa região pode gerar novos produtos de consumo maciço, mas é “um processo longo”, com investimento e pesquisa para responder às exigências nutricionais e ambientais. “Não é um caminho fácil”, alerta Luchiari.
“Produtividade, uniformidade e processamento” são princípios necessários para um cultivo “útil”, explica Izquierdo, da FAO. A “consciência” para aproveitar oportunidades é outro fator, acrescenta. Os Estados Unidos são o maior produtor mundial de quinua, porque no estado de Nebrasca a ela são dedicados 25 mil hectares. A colheita se destina a um alimento infantil da companhia Nestlé. “Os cultivos que são objeto de intenso melhoramento genético, como milho, arroz e trigo, rendem muito mais por unidade de superfície”, afirma Edmundo Acevedo, especialista em Produção Agrícola da Universidade do Chile. “Sem melhorias semelhantes, é difícil que espécies nativas, como o amaranto e a quinua, possam competir no mercado”, acrescenta.
No México, apesar da carestia, a tortilla de milho não perde a liderança no consumo. “Se o preço do milho subir ainda mais, isso pesará no bolso de todos, mas é impossível imaginar que se deixe de consumir. Uma cultura milenar sustenta esta dieta”, reflete Marcelino Vela, economista e assessor de empresas de alimentos. F
quarta-feira, 30 de julho de 2008
Divórcio entre a agricultura e biodiversidade
Por Mario Osava
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